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A culturalização de um Brasil colonial e uma gastronomia colonialista

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Por Marcos Natureba

Segundo Paulo Freire (1981)” A cultura é tudo aquilo que o homem produz e reproduz, tanto na escrita como na forma de arte, assim como a maneira de agir, de caminhar, de falar. Freire também destaca como cultural a visão que o homem tem sobre a sua própria cultura, da sua realidade. Assim qualquer indivíduo tem a sua cultura.”

Com esta inspiração, tento tecer uma crítica aos caminhos da gastronomia com um olhar sócio cultural dentro da mesma panela existencial da economia e mercado. Assim, podemos analisar que a questão da cultura dos valores culturais e das políticas culturais do Brasil como um ponto crucial para uma visão mais clara do processo sócio cultural que vivemos hoje, em que o eurocentrismo e a cultura branca nos impõe por séculos sua cultura cristã, imperialista, segregacionista e capitalista nos colonizados (nós brasileiros) e acrescenta uma colherada de importância na fervura deste caldeirão de experiências.

Neste cenário, cria-se uma cultura cheia de influências, privilegiando a reprodução do modelo europeu em detrimento da cultura nativa do Brasil e das minorias étnicas, num processo cultural de sincretismos e adjacências que beneficia, maleficia, oprime, dignifica, prostitui e floresce a cada nova intervenção geracional, numa espiral cultural ad infinitum.

No Brasil colonial,  podemos ver claramente a tentativa de aniquilar a cultura autóctone dos povos originários através das várias práticas colonizadoras dos portugueses, iniciando pela evangelização dos índios, com os jesuítas atuando de forma orgânica e sistemática nas tribos indígenas (Padre Jesuíta Manoel da Nóbrega 1546). Posteriormente, com a enxurrada de escravos negros que aqui foram desembarcados pelos portugueses, na qual os colonizadores construíram uma fórmula de “lavagem cerebral’ através da catequização de indígenas e negros, numa política opressora de conduta e comportamento, demonizando tudo que não era cristão e fora do contexto da cultura europeia, na clara tentativa de aniquilar a cultura dos colonizados afim de massificar, homogeneizar, pasteurizar e esterilizar suas singularidades e particularidades, tidas como imperfeições ou aberrações humanas, com a clara função de dominação.

Esta característica deixou traços genéticos profundos em nossa formação cultural, em que a miscelânea que gerou a cultura brasileira é “a soma dos desejos e escolhas e dos valores culturais do colonizador, somado com a falta de escolha e de sentido cultural das escolhas impostas ao colonizado” (Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses 2002).

Reflexos do colonialismo nas escolhas alimentares

Assim, nos dias de hoje podemos ver que este comportamento segregacionista se traduz nas escolhas, hoje todos temos como escolher o que comer(salvo os que passam fome que são 30% da população brasileira) e o fazemos seguindo um modelo e um padrão que nos é apresentado como opção viável que segue as tendências  como ifood, fastfood, comida para gourmets, dietas de supermercado, açougues vegetarianos(?!), praça de alimentação em shopping centers e outros, destituindo as famílias da sua própria cultura alimentar, que veio passando de geração a geração, e que garantiu a sobrevivência da biodiversidade que compõe nossas refeições e nosso paladar; a criação de técnicas de gastronomia ancestrais ligadas a realidade do campesino que produzia seu próprio alimento e que salvarguardava os sabores e os saberes pelo hábito e  que afinal de contas é o patrimônio cultural legado pelos nossos ancestrais.

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Este comportamento social de usarmos o alimento como forma de  identificação cultural é uma expressão popular que salvaguarda o patrimônio dos saberes e dos sabores ancestrais (Carlo Petrini 2009). Em tempos de alimentos ultraprocessados, termos a conexão de  uma comida feita em panela de ferro, num fogo a lenha, com ingredientes simples e de processamento mínimo, com tempo e calma para saborear e aproveitar a refeição, como um processo de nutrição e cultura, beira à um ato político, um ato de resistência cultural que no sentido da gastronomia, passa pela ancestralidade da refeição de como era que os  nossos antepassados faziam, com todo o aporte da natureza com suas adversidades, irregularidades, sazonalidades e singularidades.

A tecnificação da cultura alimentar nos tirou a memória emocional que a comida pode nos trazer, nos furta a lembrança de uma vivência anterior a esta era, a era dos alimentos e sabores artificiais, pasteuriza nosso paladar, e cria matrizes falsas para a reprodução de comida sem “alma”, destituindo os valores culturais que o alimento inclui.

Assim, concluímos que o mercado cria uma demanda artificial baseada num comportamento forjado, num produto que por sua vez não traduz as singularidades culturais regionais, segmentando, criando tendências, e criando fórmulas  prontas de consumo, com toda uma oferta enganadora e artificial de “experiências sensoriais únicas”, mas que na verdade, são fabricadas em polos industriais em massa,  em locais longínquos de onde são consumidos, produzidos em grande escala, e destituídas dos valores culturais regionais e locais, pois obedecem à uma matriz eurocêntrica que vende como globalização. Nesta “farofa eclética”, perde-se a identidade e evidencia-se um comportamento de  consumo que serve somente para aplacar a ansiedade gerada pelo aprisionamento dos nossos sentidos por esta artificialização da alimentação e da cultura alimentar.  

Em tempo, vale lembrar que nossa matriz cultural está ligada às raízes naturais dos locais e regiões que fomos gerados e educados (criando nosso banco de dados de olfato e paladar e as sinapses com as emoções) e que a perda deste poder de conexão com esta ancestralidade, possa ser um dos principais motivos do desequilíbrio social refletido nos segmentos que abordamos aqui, nos universos da gastronomia e do turismo.

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Desequilíbrio no sentido de que o consumo como comportamento social está intoxicado por este modelo que induz, gera necessidade e classifica o que é bom e o que deve ser vendido e ofertado, gerando perdas de natureza cultural materiais e imateriais, aniquilação de patrimônio cultural ancestral e a produção de indivíduos com comportamento de bando para um consumo artificial numa busca da saciedade dos sentidos dentro do padrão que o mercado dita.  

Assim, vemos que a falibilidade do estado em salvaguardar arcabouços culturais ancestrais, heterogêneos, transversais e de diferentes etnias dentro do universo dos saberes e fazeres da cultura brasilis, foi mitigado através do artigo 216 da Constituição Federal de 1988, que trata da patrimonialização de bens materiais e imateriais da nossa cultura, ato este que reconhece a necessidade desta salvaguarda como forma de expressão cultural brasileira, dentro dos vários “Brasis” culturais que podemos vivenciar em nosso país.

Marcos Natureba Iser

Chef de Cozinha Vegetariana/ Sócio proprietário da Natuveggie Alimentos Vitalizantes/Pesquisador de Nutracêuticos e Fomentador de ações sócioagroecológicas

Referências Bibliográficas

SANTOS, Fabricio Lyrio. Da catequese à civilização: colonização e povos indígenas na Bahia. Cruz das Almas, BA: UFRB, 2014. 
NÓBREGA, Manoel da. Cartas Jesuíticas 1: cartas do Brasil 1549-1560. 1 ed., Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1988.
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. 1 e 2 ed., Belo Horizonte: ITATIAIA, 2006.
RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.
PETRINI, Carlo. Slow Food princípios da nova gastronomia. São Paulo:SENAC,2009.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.