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Ecogastronomia, Slow Food e os Alimentos Bons, Limpos e Justos

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Por Marcos Natureba Iser – Chef de cozinha, Professor de culinária vitalizante, Pesquisador
de alimentos nutracêuticos, Ativista agroecológico e Permacultor

“Dize-me o que comes que te direi quem és.”

Brillat-Savarin, 1825

O alimento é o principal fator da identidade humana. Tanto nos processos de produzir na agricultura bem como na alimentação em si, o homem colhe, cultiva, domestica, desfruta, transforma e reinterpreta a natureza toda vez que se alimenta, a transformação da sociedade em torno do alimento é algo fascinante e que gera transformações no meio social e ambiental em que ocorre. (Carlo Petrini 1996)

Gastronomia por sua definição é a ciência que estuda a cultura da comida em todas as suas acepções, é o conhecimento fundamentado de tudo aquilo que se refere ao homem enquanto come, desde as questões fundamentais da boa nutrição, as boas práticas de culinária, incluindo os meios de produção dos alimentos que estão ligados à esta ciência de transformação do alimento in natura em um preparo de culinária. Em 1801 o termo gastronomia surgiu nos primeiros artigos escritos relacionados à alimentação. Sendo usado primeiramente por doutores letrados, o termo foi se difundindo no meio aristocrático para designar tudo que era relacionado ao universo do preparo dos alimentos.

A Gastronomia nasce pelas mãos dos pobres

Desde o início, a gastronomia assumiu uma conotação elitista, foram as classes dominantes e da aristocracia que escreveram para si mesmas os primeiros receituários e obras de crítica gastronômica. Acho incrível, que a cozinha sempre foi lugar de serviçais, escravos e mandados, um território habitado e que funcionava pelas mãos dos desvalidos, vencidos e conquistados; sempre foi um reduto e espaço de convergências culturais, que ao mesmo tempo criava novidades, mantinha as tradições culinária dos dominantes, pelas mãos dos escravizados e que nenhum crédito foi debitado à esta herança, pelo fato da maioria não saber escrever. A aristocracia apropriou-se do conhecimento e legou para si.

As principais invenções da gastronomia (técnicas, preparos e truques culinários) nasceram das camadas mais pobres da sociedade, em resposta às necessidades urgentes como a falta de comida, a perecibilidade dos gêneros alimentícios, a exigência de transportá-los e conservá-los, técnicas, soluções e invenções para minimizar o impacto do tempo sobre a sua alimentação, técnicas que com o uso foram desapropriadas pela aristocracia que se apoderou, aprendeu, escreveu, datou,
aperfeiçoou e transformou na gastronomia que aprendemos hoje na academia.

Assim, vemos ao longo da história, que a gastronomia em si é uma ciência que trata da alimentação, mas com uma distância afetiva da fome e dos problemas mundiais da falta de alimentos e da má distribuição para a camada da sociedade mais vulnerável, que labutou e labuta arduamente nas cozinhas de todas as etnias do mundo para produzir as maravilhas que hoje são os clássicos da culinária nos restaurantes desta economia globalizada.

Comer é um ato político

Numa visão prática, sabemos que a revolução da comida pelas mãos dos cozinheiros franceses do Nouvelle Cuisine como os irmãos Troigros e Paul Bocuse (1970) trouxe à tona várias tendências e personalidades da gastronomia clássica com um olhar mais despojado e mais próximo da origem da matéria prima, a agricultura e a pecuária, valendo-se sempre dos conhecimentos e da intimidade genuína que os camponeses tinham com os alimentos produzidos localmente e com as tradições ancestrais da culinária autóctone de quem há muito tempo prepara os alimentos para a sociedade.

Assim neste período, com estas influências revolucionárias a gastronomia cresce, toma seu lugar de interesse nas classes econômicas que podem pagar pela experiência e luxo de comer bem, e ao mesmo tempo que o “saber fazer” do cozinheiro ganha força dentro do meio intelectual e aristocrático evidenciando que a gastronomia neste formato atende uma elite mas é conduzida por trabalhadores que usam ciência e que na grande maioria são proletários e de famílias ligadas à produção de agropecuária.

Segundo Carlo Petrini (1996) “a comida é o produto de uma determinada região e suas vicissitudes, das pessoas que a povoam, sua história e as relações que instauraram.” Neste pensamento, podemos entender que o ato de alimentação é um ato político, e que a gastronomia encerra em si uma prática que possui um fio de ligação com outras campos da ciência como agronomia, nutrição, tecnologia de alimentos, hospedagem, saúde e bem-estar.

Dentro dos processos da industrialização dos alimentos aos desdobramentos da globalização, aspectos culturais singulares e tradicionais foram erodindo pela avalanche de “soluções alimentares” que a indústria da globalização criou. As monoculturas e a manipulação do mercado em torno do comportamento de consumo globalizado, minou alguns mananciais das culturais tradicionais e autóctones, alterando comportamentos geracionais que podemos traduzir em perda de identidade
cultural alimentar das gerações X,Y e Z desta era digital.

Leia também: A culturalização de um Brasil colonial e uma gastronomia colonialista

Ecogastronomia: cultura, ancestralidade, tecnologia e sustentabilidade

A ecogastronomia é o ramo da gastronomia que reúne os saberes e fazeres da agricultura e da culinária de camponês, com a visão de que o prazer de alimentar-se está ligado às coisas da terra, do mar e do ar, numa sinfonia natural entre a natureza e o homem que transforma a matéria prima de forma branda num preparo de culinária que remete à terroirs e as raízes de onde pertence o alimento, e convida ao comensal e o gastrônomo, ou ao consumidor, ou ao comedor, ou ao cliente, enxergar e se
sensibilizar com os efeitos e os resultados dos processos de suas escolhas alimentares.


Num âmbito profissional a ecogastronomia é desenvolvida por profissionais do ramo engajados no consumo responsável e uso consciente dos recursos da natureza ligados à produção dos alimentos, dos fatores que influenciam no espaço da produção agrícola, no campo e nas pessoas que se envolvem no cultivo destes alimentos, o transporte destes alimentos, a armazenagem e conservação até o processamento dentro dos restaurantes, cozinha doméstica e todos os atores sociais deste segmento.

A ecogastronomia é um conjunto de princípios para uma nova gastronomia, são práticas apoiadas por fundamentos científicos em que a apreciação dos sabores naturais dos alimentos cultivados de forma ecológica, traduzem-se em preparos de uma culinária que vitaliza, que gera prazer do paladar e satisfação a todos os envolvidos no trabalho de levar o alimento “do campo à mesa” (farm to table).

O conceito do termo gastronomia, com a publicação do livro “Fisiologia do gosto” de Brillat-Savarin (1825) que amplia, na revolucionária Paris da época, este conceito no universo da mesma, na forma da autorresponsabilidade e na complexidade que trata a definição do termo se aplica muito bem ao conceito de ecogastronomia:

“A gastronomia pertence à história natural, pela classificação de se faz das substâncias alimentícias, à física pelas diversas análises e decomposições a que as submete, à cozinha pela arte de preparar os alimentos e torna-los agradáveis ao paladar, ao comércio pela procura do melhor preço e melhor qualidade, à economia política pelo que oferece de recursos fiscais e pelos métodos de intercâmbio que estabelece entre as nações.”

Billat Savarin, 1825

Slow Food, novos princípios para a gastronomia

O movimento Slow Food, fundado pelo honorável gastrônomo, Carlo Petrini (1996), é um marco na aplicação do profundo conceito da ecogastronomia, em que pela aplicação de uma lógica naturalista o escritor traz conceitos novos aplicados:

  • Alimentos Bons referindo-se à alimentos de sabor natural e terroir envolvidos produzidos de forma cuidadosa pelos agricultores garantindo suas características originais,
  • Alimentos Limpos referindo-se à uma atividade agropecuária na produção de alimentos sem uso de químicos invasivos que alteram a estrutura do solo e que alteram sabor, e características organolépticas específicas dos alimentos,
  • Alimentos Justos referindo-se à relação do produtor campesino com os alimentos que ele nos oferta com seu trabalho, a qualidade de vida deste trabalhador o valor justo pago pelo seu trabalho e toda a importância da cadeia produtiva e de transporte até o destino final destes alimentos, o valor monetário e social deste alimento no âmbito em que está alinhado com o consumidor final.

Proposta de Carlo Petrini (1996) em seu livro “Slow Food – Novos princípios para uma nova gastronomia”, traz a reflexão destes quase 150 anos em que a gastronomia moderna se fez ciência e revolucionou comportamentos de consumo, status social e que ditou de forma aristocrática (e muitas vezes tirana) os meios alimentares. Desta forma, as práticas envolvidas no processo alimentar do campo a mesa, (farm to table), é o tema que queremos abordar dentro desta análise sob os conceitos do slow food.

Quando Petrini defende o direito ao prazer da alimentação, dentro das referências alimentares e nutricionais da FAO e da ONU, aonde o prazer está ligado à cultura e tradição, e portanto sendo direito social de manter suas tradições e singularidades étnicas no âmbito alimentar, assim o direito ao prazer neste caso remete ao entendimento de que a realização da satisfação da necessidade fisiológica de matar a fome com um alimento que esteja dentro da sua cultura alimentar e que esta seja familiar e que tenha raízes de sua identidade cultural e portanto social, este prazer é um direito primário.

Assim, a Ecogastronomia está intimamente ligado à estes valores sociais e culturais traduzida pelas Fortalezas do Sabor, Arca do Gosto e *Aliança dos Cozinheiros. Inseridos dentro das várias comunidades mundiais, o Movimento Slow Food propõe o consumo responsável através das práticas de comércio de alimentos regionais abastecido pela agromaripecuária familiar e de extrativismo sustentável. Dentro das redes de consumo responsável, coletivos de consumidores e produtores agroecológico, associações e cooperativas rurais e urbanas em cadeias curtas de consumo (Gazzola 2017) com maior permeabilidade social dos alimentos produzidos localmente de distribuição regional, numa lógica socioeconômica mais ecológica e eficiente, formando circuitos de feiras populares, e compras coletivas aonde na prática, reduz custos operacionais com intermediários e aproxima as realidades do produtor e do consumidor, reunindo atores sociais distintos para o mesmo campo de experiência, num intercâmbio que fortalece as relações e renova a conexão social elementar da gastronomia.

Dentro desta exposição de conceitos, valores e ética, a ecogastronomia por fim, pode ser um segmento natural e justo da Gastronomia enquanto ciência, sendo que, o resgate do direito fundamental ao alimento e do prazer de comer, é o direito que nos liga a vida e a alegria de viver.

Por Marcos Natureba Iser – Chef de cozinha, Professor de culinária vitalizante, Pesquisador
de alimentos nutracêuticos, Ativista agroecológico e Permacultor

Fotos: Slow Food Brasil

Referências
– DA FONSECA, Gabrieli Aparecida; TROITIÑO, Sonia. A IMPORTÂNCIA DA ORGANIZAÇÃO DO CONHECIMENTO PARA A DISSEMINAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: uma análise comparativa entre o catálogo Arca do Gosto, Guia alimentar para a população brasileira e livro alimentos regionais brasileiros. – In: VIII Seminário Hispano-Brasileiro de Pesquisa em Informação, Documentação e Sociedade (8shb) 2019.
– SCHNEIDER, Kamila Guimarães et al. A REVOLUÇÃO ESTÁ NO PRATO: do global ao local no movimento slow food. 2015.
– BARBER, Dan. O TERCEIRO PRATO: notas de campo sobre o futuro da comida. Editora Rocco, 2015.
– PINHEIRO, Ana Paula Becker. ANÁLISE DA ECOGASTRONOMIA COMO FERRAMENTA DE EDUCAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL DO MOVIMENTO SLOW FOOD: um estudo de
caso. 2020.
– GAZOLLA, Marcio; SCHNEIDER, Sergio. CADEIAS CURTAS E REDES AGROALIMENTARES ALTERNATIVAS: negócios e mercados da agricultura familiar. 2017.
– SINGER, Peter. A ÉTICA DA ALIMENTAÇÃO. Elsevier Brasil, 2007.
– GILLESPIE, ChH , GASTROSOFIA E NOUVELLE CUISINE: Entrepreneurial Fashion and
Fiction, British Food Journal, 1994, Vol. 96 No. 10, pp. 19 23. https://doi.org/10.1108/00070709410072472
– PALFREY, John; GASSER, Urs. NASCIDOS NA ERA DIGITAL. Porto Alegre: Artmed, 2011.
– PETRINI, Carlo. SLOW FOOD: princípios da nova gastronomia. 2009.
– PETRINI, Carlo. SLOW FOOD: BOM, LIMPO E JUSTO. Editora Senac São Paulo, 2021.
– BRILLAT-SAVARIN, Jean-Anthelme. A fisiologia do gosto. Companhia das letras, 2019.

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