Qualquer semelhança é mera coincidência.
Podia bem ser a Praia do Rosa: verde, exuberante, animada. Trilhas, piscinas naturais, prainhas escondidas, altas ondas e muitos olhos vindos de longe para ver e viver esta natureza.
Podia este ser um texto repleto de dicas de turismo, também, mas não é. É um pouco de “localismo”. De semelhanças gritantes com nossa querida Praia do Rosa (ou como ela foi num passado próximo).
Pic of the day
Sobe morro, desce morro.
“Que vista linda! Faz um Stories aqui!”
“Que energia!”
Frases ouvidas também no Rosa.
“Eu queria morar aqui!”
Canto de passarinho, pé na área, reggaezinho, agenda cheia. Fotos que vão colorir o feed e dizer “Estive aqui”. Quanto turista! Quanta gente sedenta pela foto do dia, vendo a beleza da natureza através de suas lentes! Parece até o Rosa no ano novo, com tantos corpos esculpidos posando no cenário perfeito. Me senti em casa!
Escravidão altas vibes
E para servir todo esse povo, muitas mãos que trabalham por pouco. Quilos de camarão pra descascar, moqueca para servir, incansáveis horas de pé pra lá e pra cá, sorrisos de boas-vindas para dar. Camareiras, garçons e garçonetes. São 12, 14 horas de trabalho para ganhar R$ 1.500,00. “A sorte é os 10%” – Aquele que a gente se recusa a pagar! E os gringos, que dão gorjeta (parte da cultura estrangeira que a gente não aprendeu a copiar).
Tem um dia de folga na semana. Que às vezes ainda serve pra fazer bico. Descarregar barco com material de madeira, suprimentos, subir tijolo na obra, tomar um banho de mar.
“Essa vista!” E os locais que se contentem com ela, porque o lucro de todo esse esforço fica para as poucas três ou quatro famílias donas da Ilha. Parece um tanto com o Rosa…
Então chega de turistar, vamos no rolê nativo! Porque a mão de obra que aguenta a rotina corrida é jovem, vem da cidade com a alma calejada buscando a natureza para curar suas feridas sociais. Encontra. Porém, explorada sem cerimônia tem suas artimanhas para aguentar o tranco. Se reúne para anestesiar alguns sentidos. E dali sobra um bocado de lata e bituca. Te lembra algum lugar?
Mas não se preocupe! Quando amanhece, são os mesmos desnoitados que vão deixar tudo limpinho, para um novo dia no paraíso. Uma rotina frenética de turismo em que as pessoas vêm do mundo inteiro deitar nas espreguiçadeiras e esperar que alguém lhe encha os copos, lave os pratos e recolha do banheiro seu papel cagado.
Do mar viestes, ao mar voltarás
Lá tem petróleo! Em forma de plástico para todo lado. Copos, canudos, embalagens que facilmente vão parar dentro do mar. Mas ninguém quer saber o que acontece com o lixo gerado na ilha. Essa pic não rende likes. (Aliás, para onde será que vai o lixo da Praia do Rosa…)
A maré, regida pela lua cheia, três vezes ao dia sobe com força e começa a adentrar as construções da beira. Leva as contenções que homem ingênuo fez para tentar segurar o mar com sacos de areia. Parece muito com o Rosa…
Depois a maré baixa, trazendo o contraste do céu no mar e aquela areia, com os micro pedacinhos de plástico coloridos. Os mesmos que a gente encontra na Praia do Rosa, misturados a outros resíduos mais recentes que vêm tanto da pesca quanto da vida de consumo moderna.
Também tem petróleo líquido. Nos barcos por todo o lado levando e trazendo gente por meio da queima de combustível fóssil. Aquele mesmo petróleo que a gente não quer ver sendo extraído aqui no nosso lugar (nos outros, pode). Mas para mover os jet-skis, lanchas e Uber náuticos lá é o que tem. E lá vai o nativo vendendo seu pedacinho de paraíso pra lá e pra cá, fazendo fumaça e com aquela paz de espírito que só quem está cercado de mar é capaz de mostrar.
E tem os navios, gigantescos, levando toda nossa riqueza pra fora ali passando sob nossos narizes.
Bebeu água?
A água é abundante. O saneamento é um mistério.
Tem riachos e nascentes pelos caminhos, formando córregos que desembocam no mar. Mas ninguém soube nos garantir ao certo para onde vão os milhares de litros de descarga dos hotéis e a água da pia que lavou os pratos de camarão dos restaurantes. Isso lembra a Praia do Rosa…
Tem estação de tratamento de água na ilha! E ela sai diretamente da torneira! Pena que não tem o mesmo charme daquela com bolhas, engarrafada em plástico colorido, que vai alimentar o ciclo doentio no mar.
Todo Carnaval tem seu fim
Na ilha não tem sábado, nem domingo, nem segunda. Todo dia é dia de rolê. E talvez seja no inverno que aquele povo que tanto sua para ganhar algum vintém possa realmente tomar um banho de mar sem ter que ficar na responsa de encher o copo do turista que acaba de esvaziar.
Dia triste mesmo é o dia de ir embora. Quando termina aquele sonho dourado de despreocupação total. Sorte minha que vivo num paraíso tão semelhante, mas do lado de quem se firma no inverno para aguentar o verão.
Até breve!
Máximo respeito, Ilha do Mel!
Este é um texto opinativo e sua proposta não é, de maneira nenhuma reduzir a beleza e a importância da Ilha do Mel para o turismo brasileiro, mas pontuar lados dessa atividade que precisam ser visitados urgentemente ali, aqui na Praia do Rosa e em qualquer lugar!
A Ilha do Mel, localizada na Bacia do Paranaguá (PR) é um pedacinho de mata atlântica preservada de 39km de extensão, cercado por água, que recebe milhares de turistas o ano inteiro. Na ilha só se anda a pé, um lugar perfeito para relaxar longe das cidades e em meio a vegetação extremamente preservada (cerca de 90% da ilha).
São menos de 2mil moradores em uma estrutura tão simples quanto receptiva! E aquele mar de gente que vem só visitar. A biodiversidade encanta. As previsões para o futuro assustam.
Além das praias belíssimas, da Unidade de Conservação Parque Estadual da Ilha do Mel (PEIM), trilhas e cenários de natureza quase intocada, estão os pontos culturais, como a Gruta das Encantadas , a Fortaleza Nsa. Sra. Dos Prazeres e o Farol das Conchas.
Ali se vê que a natureza é realmente o principal atrativo, mas mesmo assim, a consciência sobre o impacto da atividade turística por quem chega ainda é rasa. Os desafios sãos mesmos do turismo predatório da Praia do Rosa e região: os resíduos, o saneamento, a desigualdade social, a desvalorização da cultura local, a especulação imobiliária…
Por Glaucia da Rosa Damazio.
Jornalista e fundadora da Saberes.