A realidade dos fatos: Nane revela tudo sobre a violência sexual que sofreu na Praia do Rosa em 2022

Em 2022, a Praia do Rosa ficou em choque com o caso de violência sexual que aconteceu com Elaine Rezende de Moraes, a Nane. O crime foi caracterizado como estupro de vulnerável e os dois criminosos foram presos e condenados a mais de 17 anos em cárcere privado. 

Passado mais de um ano após o ocorrido, Nane diz que desde então, ela precisa renascer dia após dia. E hoje se sente mais forte e preparada para falar sobre a violência que sofreu. O objetivo deste relato, é alertar a comunidade sobre os comportamentos da vítima e dos amigos da vítima. Comportamentos esses que se forem evitados, podem salvar vidas. Esse relato serve também como alerta para que possamos refletir sobre a falta de empatia e compaixão para com a vítima em meio a uma sociedade que a julga e culpabiliza muito as mulheres que sofrem de violência sexual. 

Nane tem 42 anos, é mãe de uma adolescente e profissional do ramo da gastronomia. Vendia quitutes na beira da praia, era cozinheira nos restaurantes locais e teve seu próprio Bistrô dentro do Rosa Surf Hostel. Muita gente a conhece como uma verdadeira guerreira, mulher empreendedora e comunicativa.

Acompanhe abaixo, a entrevista que abre uma série de reportagens sobre violência contra a mulher, e revela os detalhes deste caso que abalou a comunidade da Praia do Rosa.

Dani: Você pode relatar a data em que sofreu a violência sexual, onde você estava e o que estava fazendo quando tudo aconteceu?

Nane: No dia 28 de março eu estava trabalhando em uma choperia no centrinho da Praia do Rosa. Saí do trabalho depois de tomar alguns chopes e passei em uma boate próxima com meus amigos. Fiquei lá por pouco tempo e por volta das 00:40 decidimos ir para outro lugar. Paramos no centrinho e eu comprei mais uma cerveja. Estava bastante alcoolizada e cansada, já que tinha saído na noite anterior e trabalhado o dia inteiro. Estava aérea e fui caminhando devagar, enquanto meus amigos estavam 2 minutos à frente. Estava indo mais atrás com a cerveja na mão enquanto havia um cara me seguindo. Ele se aproximou, pegou na minha mão e me conduziu de volta para o centrinho, onde tinha um carro parado. 

Fui colocada dentro do carro, logo apaguei. Então, começaram a me molestar enquanto me levavam para um local afastado. Na mesma madrugada, eu acordei perto da lagoa que fica no Bairro Encantada com o rosto muito machucado. Me estrangularam, cortaram minha boca, quebraram meu dente canino… tentaram me estuprar mas eu não lembro de nada. Os vídeos do celular do criminoso mostram claramente que eu estava desacordada.

Dani: Mesmo inconsciente, como lembra de tantos detalhes?

Nane: Todas essas informações detalhadas fazem parte do inquérito policial, que descobriu tudo através dos vídeos gravados no celular do criminoso e nas câmeras de segurança das residências e do comércio local. Sim, eu estava desacordada, inconsciente e fiquei atônita quando acordei, sem lembrar de nada.

“Às vezes dou graças à Deus por não lembrar, pois mesmo sem memória, sinto muita dor na alma.“

Dani: Qual foi sua atitude após o episódio de violência sexual?

Nane: Acordei atônita, sem saber o que tinha acontecido. Perto da lagoa onde acordei, havia a casa de uma amiga. Ela me recebeu e ligou para outra amiga que me buscou e cuidou de mim. Fomos para o pronto socorro em Garopaba onde fui tratada com hostilidade, comentários e olhares de julgamento. Dois militares fizeram o boletim com muito descaso, não coletaram meu RG e nem meu nome. Voltei pra casa desolada. Foi somente no dia seguinte que minha amiga Jana me levou para Laguna, até a Delegacia da Mulher (DPCAMI).

Dani: Como foi que a Polícia tratou o seu caso?

Nane: O meu caso foi investigado, e os culpados foram julgados e condenados em menos de um ano. O trabalho da delegada Gabriela da Polícia Civil de Garopaba foi exímio.

Naquela terça-feira, a delegada da mulher de Laguna ligou diretamente para a delegada da polícia civil de Garopaba Gabriela, que me chamou imediatamente na delegacia de Garopaba. Quando eu cheguei lá, os vídeos da conveniência do centrinho já estavam disponíveis para dar início às investigações.

Dani: Sabemos que a sociedade julga muito todas as pessoas, e ainda mais as mulheres, quando passam por um episódio de assédio. As pessoas esquecem que, quem vai fazer mal para alguém, não vai olhar o diploma ou a conta bancária desta pessoa. Independente da origem dessa mulher, independente do que ela possa ter ingerido, seja álcool ou drogas… Todas e todos estamos vulneráveis dentro dessa sociedade que não tem a proteção necessária para evitar que isso aconteça. 

Conta pra nós Nane, como foi a reação da sociedade perante o teu caso de violência sexual?

Nane: Eu podia estar até pelada na rua. Ninguém tem direito de violar o meu corpo e fazer o que fizeram. Isso é responsabilidade de todos. Eu saio do trabalho à 01:00 da manhã de bike, moro lá em Ibiraquera. Quem garante que eu vou chegar segura em casa? Esta responsabilidade precisa ser de todos. Empresários, pousadeiros… eu sou uma moradora local, resido no Rosa há mais de 4 anos. Sou trabalhadora. Já tive bistrô, rotisserrie, fomento a economia local, vendo sanduíche na praia, trabalho nos restaurantes como cozinheira… Falta união e responsabilidade pela nossa segurança e pela nossa liberdade, pois eu estava exercendo a minha liberdade de ir e vir.

Se acontece qualquer coisa com uma funcionária, de quem é a responsabilidade, sendo que não temos mobilidade nem iluminação na Praia do Rosa?

Dani: Quais foram os piores comentários que você teve que escutar?

Nane: Comentários maldosos, fofocas e especulações de que eu estava devendo para traficantes. Eram boatos do tipo: “Áh! isso aconteceu porque estava encomendado!” As pessoas também falavam coisas do tipo: “Ela tava muito louca na rua, estava alcoolizada…” Recebi esses comentários e senti como se as pessoas estivessem pensando: “Ela pediu para acontecer”. Eu, vítima de uma violência desse nível, tive que escutar, por exemplo, que um amigo estava “puto comigo” e isso me machucou bastante. Também fiquei arrasada com a falta de bom senso da comunidade, que deixou vazar as imagens das câmeras de segurança cedidas pelo comércio, onde eu aparecia descendo a rua cambaleando e um cara me seguindo. As imagens começaram a circular e acabaram chegando no whatsapp da minha filha. Foi um choque pra ela! 

Dani: Você ficou satisfeita com o trabalho da Polícia Civil?

Nane: O inquérito policial que foi executado pela Polícia Civil de Garopaba foi excepcional. Em menos de um ano os criminosos foram localizados através das câmeras de trânsito, julgados e condenados. O trabalho da polícia civil foi minucioso, trataram o caso com sigilo e profissionalismo. A equipe de investigação foi sensacional. Fiquei muito satisfeita com o trabalho deles. Percebi que às vezes, as pessoas tentam fazer justiça com as próprias mãos, e isso pode atrapalhar muito na investigação. No meu caso, eu tive minha imagem exposta através das filmagens que vazaram. Entendo que a intenção foi boa, mas o correto mesmo é deixar que a polícia faça seu trabalho.

Dani: Muitas vezes, as pessoas julgam as demais por seu momento de vida, escolhas ou situações, sejam elas homossexuais, moradores de rua, adolescentes, mulheres, alcoólatras ou dependentes químicos. Mas ninguém pensa ou se questiona “Qual é a história desta pessoas”? Conta pra nós, Nane, como estava a tua saúde emocional naquela época? 

Nane: Muitos desafios! Estava vindo de uma pandemia, tinha fechado a loja. Eu sou uma guerreira. As pessoas falam dos porres que a gente toma, mas não olham os tombos que a gente leva. É claro que estava bebendo para fugir da realidade! Estava vivendo o término de um relacionamento… minha filha foi embora para SP e eu me vi sozinha, com minha loja fechada e com muita dificuldade de pagar o aluguel. E eu ali, tentando empreender. Me sentia muito sozinha e insegura. 

Dani: Agora, passado mais de um ano, quais são os impactos da violência sexual na sua vida?

Nane: Me senti muito culpada por estar bêbada e por não lembrar. Foram muitos impactos na questão da minha autoestima, insegurança, psicológicos. Eu não queria mais viver. Deixei de acreditar na humanidade. Foi com muita força minha e também de amigos e da própria comunidade que fui me reerguendo. Hoje eu sinto quão forte foi esse apoio, as pessoas me ajudaram muito! Com dinheiro para passagem para eu voltar para SP, vakinha, e ajuda para comprar um novo celular. Eu consigo ver acender essa luz da generosidade e da compaixão através das  pessoas que estenderam a mão. Muita gente boa ajudou. Recebi mensagens de lojistas, pousadas, e aí nasceu a Rede Feminina de Proteção da Mulher.

Dani: Nane, sabemos que muitas mulheres passam por situações de abuso na vida. O índice de violência sexual contra mulheres é altíssimo, então a probabilidade de conhecermos mulheres abusadas é muito grande. Qual a sua mensagem para ajudar mulheres a evitar esse tipo de situação? E o que você tem a dizer para as mulheres que já passaram por algum caso de abuso? 

Nane: O que eu posso dizer é: Não tenham vergonha de denunciar. Não sinta culpa, não sinta vergonha. Existe sim muita gente boa! A gente pode ainda acreditar que existe gente boa que vai ajudar e estender a mão. 

Às vezes o assédio acontece no dia-a-dia. No trabalho, no metrô, supermercado e até dentro da nossa família. Violência psicológica também é assédio. Por isso, precisamos ter disciplina com nosso autocuidado. Aprendam a não se colocar em situações de vulnerabilidade. Cuidem uns dos outros. Cuidem umas das outras. Se você estiver em uma balada, olhe para o lado, estenda a mão sem julgar, ajude a pessoa a chegar na sua casa com segurança.

Entre para dentro de você, busque evoluir, e una-se com a comunidade para exigir seus direitos. Temos que fazer a nossa voz ser ouvida! Essa é uma bandeira que eu quero levantar e que sozinha eu não conseguiria. Eu preciso de vocês e nós precisamos umas das outras para lutar pelos nossos direitos. Nossa segurança e nossa liberdade. 

E por último, eu quero falar para as pessoas que tentaram denegrir a minha imagem: O telhado é de vidro. Antes de falar e propagar falsas informações, tente se informar, pois o que aconteceu comigo, pode acontecer com qualquer um.

A violência contra a mulher é um problema grave e que precisa ser denunciado. Se você é vítima ou conhece alguém que está em situação de risco, não se cale. Ligue para o Disque 180, um canal gratuito e sigiloso que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. Você também pode procurar uma delegacia especializada da mulher (DEAM), onde receberá acolhimento e apoio jurídico. Fonte: Polícia Civil de Laguna

Reportagem por Dani Iacy